quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A capital mundial do morticínio

É impossível não se pensar na facilidade com que dirigentes, jornalistas, figuras religiosas e cidadãos comuns de todo o mundo desviaram o olhar quando 6 milhões de judeus foram mortos no Holocausto. Mais fácil ainda é partir do princípio de que, chegada a nossa vez, nos comportaríamos melhor.

No entanto, até agora a guerra brutal aqui no Leste do Congo não só dura há mais tempo do que durou o Holocausto, como parece já ter reclamado mais vidas. De acordo com um estudo avalizado, calcula-se que as mortes causadas pela guerra no Congo totalizavam 5,4 milhões em Abril de 2007, e daí para cá o seu número aumentou ao ritmo de 45 mil por mês. Isso significa que, meia dúzia de anos volvidos, atingiram os 6,9 milhões. O que esses números não conseguem captar é a que ponto o Congo se tornou a capital mundial da violação, da tortura e da mutilação, sob formas que destroem sobreviventes como Jeanne Mukuninwa, uma linda e alegre rapariga de 19 anos que, surpreendentemente, consegue encontrar dentro de si a coragem de rir. Os pais desapareceram nos confrontos quando ela tinha 14 anos e por isso mudou--se para casa de um tio.

Uns meses mais tarde, a milícia hutu extremista invadiu a sua nova casa. Ela só se lembra que foi no dia em que começou o seu primeiro período menstrual, o único que teve. "Primeiro ataram o meu tio", conta Jeanne. "Cortaram-lhe as mãos, vazaram-lhe os olhos, deceparam-lhe os órgãos sexuais e assim o deixaram. Ainda estava vivo." A mulher e o filho também lá estavam. Depois levaram-nos para a floresta. A milícia é conhecida por raptar pessoas e escravizá-las. Os homens são feitos carregadores e as raparigas transformadas em escravas sexuais. Jeanne e as outras raparigas eram regularmente atadas e violadas por vários homens em sucessão. Depressa engravidou. As violações continuaram, às vezes com paus que lhe rasgavam o interior e a deixavam incontinente. Espantosamente, o feto sobreviveu, mas o pélvis da rapariga era demasiado imaturo para dar à luz.

Uma das pessoas sequestradas era um médico que tratava dos soldados. O médico, vendo que Jeanne estava perto de morrer devido à obstrução do canal de parto, abriu-a com uma velha faca, sem anestesia, e retirou-lhe o bebé. Jeanne ficou delirante e quase morta, pelo que a milícia a largou à borda de uma estrada.

"Ficou completamente destruída por dentro", diz outro médico, Denis Mukwege, que lhe salvou a vida depois de ser trazida aqui para Bukavu. Mukwege, de 54 anos, dirige o Hospital Panzi, de 400 camas, apoiado pela União Europeia e por grupos privados como a Fistula Foundation. Às vezes fala-se nele para o Nobel da Paz, pelos esforços heróicos de combater a guerra e sarar as vítimas. Mukwege operou Jeanne nove vezes em três anos para tratar das fístulas que a tornavam incontinente. Por fim teve êxito e ela voltou para a aldeia, para viver com a avó. "Disse-me que me mantivesse afastada de homens durante três meses", recorda Jeanne, para dar tempo ao corpo de sarar. Mas três dias depois de ter voltado para a aldeia, a milícia apareceu de novo e ela foi outra vez violada. Jeanne, mantida nua na floresta e a feder devido à reabertura dos ferimentos internos, acabou por conseguir fugir e encontrar o caminho de volta para o Hospital Panzi. E Mukwege já deu início a uma segunda ronda de cirurgias.

Cerca de 12% das mulheres violadas que tratou tinham contraído sífilis e 6% têm VIH. Ele faz o que pode para lhes tratar dos ferimentos internos e ajudá-las a sarar - até à vez seguinte. "Às vezes não sei o que estou aqui a fazer", desespera Mukwege. "Não há solução médica possível." Aquilo que mais falta não é ajuda humanitária para o Congo, mas um esforço internacional muito mais vigoroso para acabar com a própria guerra. Isso significa pressionar o vizinho Ruanda, um país tão aclamado pelo sua governação intrafronteiras que tende a obter boas notas apesar do possível papel que desempenha nos crimes de guerra. Também precisamos de pressionar o presidente congolês, Joseph Kabila, para que detenha o general Jean Bosco Ntaganda, procurado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra. E, como recomendou a organização de defesa de direitos Enough Project, precisamos de um esforço orientado pelos EUA para vigiar o comércio de minerais do Congo, para os senhores da guerra deixarem de comprar armas por meio da exportação de ouro, zinco e coltan (columbite-tantalite).

A não ser que se exerça alguma liderança nestas paragens, os combates no Congo, alimentados pelos lucros das exportações de minérios, continuarão indefinidamente. Por isso, se não agirmos agora, quando o faremos? Quando o morticínio chegar aos dez milhões? Ou quando Jeanne for raptada e violada pela terceira vez?



Exclusivo i/The New York Times

Jornalista

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